Publicamos o artigo ‘A volta à violência fundacional’, umha reflexom sobre a finalidade política da presença policial

Publicamos hoje o texto ‘A volta à violência fundacional’, um interessante artigo assinado por Mauro Caeiro Brá e publicado nesta semana no portal independentista galizalivre.org. A partir dum facto anedótico ocorrido numha academia policial, Caeiro Brá debulha a finalidade de certos ritos de iniciaçom na formaçom de agentes da repressom, os objectivos políticos da presença policial no espaço comunitário e o essencial papel da violência, como prática fundacional e ameaça permante, no sistema que conhecemos como ‘democracia a la española’. Recomendamos vivamente umha leitura atenta e reflexiva deste texto que, sem dúvida, contribuirá a melhor compreender a utilidade psicosocial que para o sistema de dominaçom tenhem determinadas práticas policiais e, especialmente, a situar o papel das FSE como elemento político de primeira categoria na configuraçom da ordem constitucional da Monarquia imposta polo general espanhol Francisco Franco. A VOLTA À VIOLÊNCIA FUNDACIONAL Em umha academia compostelana que prepara jovens galegos para as oposiçons à Polícia Nacional espanhola, o professor, ex-polícia, interrompe a aula e dirige-se ameaçante face um aluno que nom chega aos vinte anos: —¡Usted! ¡Métase en ese armario! O jovem, que ficara quedo, bloqueia-se, torna-se encarnado mas nom sabe o que fazer perante aquela ordem absurda e humilhante. — ¡Usted, a ver!, ¿qué hace si yo le mando meterse en el armario?, ¿que hace usted?, si no se mete será usted un mal policia por no saber obedecer una orden, si se mete es usted un mal policia por obedecer ciegamente y ser tonto de remate humillándose. Em todas as sociedades de classes a origem do poder e o statu quo nom é fruto de umha fundaçom racional da ordem social, tal e como dim as mitologias contractualistas dos grandes filósofos políticos do Iluminismo. A legitimidade do poder vigente está basada no seu reconhecimento por parte das classes dominadas, reconhecimento fundado à sua vez no desconhecimento da origem violenta da ordem social hierárquica e injusta (1). No primeiro momento está sempre o que Bertrand Russel chama o «poder nu», a simples força das armas e os exércitos. A violência fundacional. Com o tempo o emprego desta violência tam directa diminui em favor de outra mais subtil, a simbólica, que interioriza a “ordem” nos sujeitos dominados e nos seus esquemas mentais, nos gestos dos corpos… O costume naturaliza essa violência e desigualdade e fai-na «normal». Todo o processo é agilizado por um poder desejoso de agilizar recursos, mecanizar a sua dominaçom criando umha economia da dominaçom (2). “A polícia recorda pola sua mera existência a violência extralegal sobre a que se basa a ordem legal” A polícia, em si própria, só com a sua presença, é um desfile de vitória militar: armas, placas, vestimentas de guerra, calçado, mas também gestos, olhadas e atitudes a exibirem-se num cerimonial de força. Di Bourdieu: «Mas a força do costume nunca anula completamente a arbitrariedade da força, sustento de todo o sistema, que sempre ameaça com manifestar-se. De este jeito, a polícia recorda pola sua mera existência a violência extralegal sobre a que se basa a ordem legal …». O seu simbolismo de violência é mais sublinhado do que atenuado polos seus educados formalismos (sempre tratam de você), que som umha imagem em negativo de aquilo no que se podem converter se for preciso. Eis a clave da sua legitimidade social: exibir os seus símbolos de força mas a preço de nom usá-los sistematicamente, mascarar a sua violência de inevitável (“no me obligue a hacerlo caballero”). A polícia e sua a reactivaçom simbólica através da violência Mas se os símbolos da sua força nom forem nunca utilizados perderiam qualquer eficácia. Umha pistola de polícia enquanto comece a semelhar umha pistola de joguete e perde o seu poder simbólico coercitivo deve ser disparada para recordar a sua verdade de sangue e fogo (3). O seu significado, a sua força, devem ser reactivados em ocasions excepcionais. Tam amiúdo como para manterem-se activos, tam escassamente como para nom desvelarem a sua arbitrariedade. É o mesmo processo que descreve Foucault em ‘Vigilar e punir’: o rei deve executar alguém no cadalso de vez em quando para demonstrar que a forca e o verdugo existem, que nom som só símbolos de umha violência já esquecida; mas também deve regular o número de espectáculos punitivos tais que nom pareça indiscriminado; deve escolher bem as vítimas para que nom gerem comoçom social. O poder intenta mascarar essa origem fundacional na violência pura, a razom da força quer-se agachar com a força da razom. O processo histórico da Transacçom espanhola pode-se analisar nestes parámetros. Um momento inaugural de umha nova ordem fundada na violência total (Guerra Civil no 1936) intenta, coincidindo com a transacçom geracional, investir-se da legitimidade que dá a consagraçom democrática das urnas. A IIª Restauraçom Bourbonica dirigida desde o regime franquista para converter a Juan Carlos I em sucessor de Franco, acha a sua ocasiom no 1978 para legitimar-se. A chantagem do referendo da Constituiçom, é umha operaçom de alquimia social operada nos alambiques em forma de urna da democracia formal, culminada com o auto-golpe de Estado de 1982, e que converte um processo de força, violência e morte em umha decisom democrática dos povos do Estado espanhol. O bosquejo da origem violenta do statu quo, das diferenças de classe e hierarquias sociais naturalizadas nos costumes, fossilizadas na linguagem, sancionadas na lei e legitimadas pola democracia formal, tem como objectivo entender a estória do jovem aspirante a adulto que narrava a descriçom etnográfica que encabeça o artigo. Ritos de passo Os ritos de passo de quase todas as culturas sem escritura recreiam a história mítica sobre a sua origem, que reflexa e reforça os seus valores sociais. Nesta dramatizaçom colectiva, os jovens encarnam o papel da personagem que no mito representa ao primeiro homem da tribo, e enfrontam as mesmas situaçons que ele. Amiúdo é um rito mui doroso porque deve server de prova de madurez, e essa mesma dor também ajuda a criar umha atmosfera psicológica na que o jovem aspirante está obrigado a sentir intensamente e acreditar nos valores e condutas que representa no rito e que deve manter na sua vida como adulto. Embora associemos ritos de passo como culturas “primitivas”, acham-se a diário na vida urbana moderna, por exemplo nos sacramentos cristaos, celebraçons académicas ou como exemplo extremo os selectos clubes universitários de Norteamérica onde se fai passar ao aspirante (o novato) por todo tipo humilhaçons. A dor e humilhaçom passadas serám o aval da sinatura de entrada no clube, e o compromisso com manter os seus valores e reproduzí-los. O rito de passo da polícia nom é distinto. A transcriçom etnográfica que encabeça o artigo é porém umha estória real. O ex-polícia professor é o mestre da cerimónia do rito de passo encarregado de levá-lo à origem da legitimidade e razom de ser da polícia: a força e a violência arbitrárias, a subordinaçom e obediência. O polícia, na margem mesma da lei entra em contacto com a extralegalidade da sua força, nessa zona de obscuridade da sociedade. O dilema no que coloca ao aluno, a humilhaçom que o bloqueia, só lhe recorda umha cousa: a arbitrariedade de quem mande acima tua é a única razom. E a sua entrega total à sua nova tribo, ele pertence-lhe a ela. Quando exerça, se nom acata umha ordem embora esta seja imoral e inumana, ponhamos por caso efectuar torturas, será culpável; se a acata e posteriormente se descobrem publicamente as torturas provocando um escándalo, a instituiçom nom valerá em absoluto por ele e carregará-lhe toda a responsabilidade. O rito do armário leva ao jovem à fundaçom mítica da sua legitimidade e valores, recorda-lhe que se situará para sempre no arbitrário: na violência. Mauro Caeiro Brá Galiza, 28 de Agosto de 2008. Notas (1) Para umha explicaçom em profundidade disto veja-se o texto de Bourdieu, «A violência e a lei», proximamente traduzido para o galego polo galizalivre.org.