Analista belga de liberdades públicas e legislaçons ‘antiterroristas’ assegura que “a tortura é sistemática em Espanha”

Publicamos nesta semana umha entrevista a Jean-Claude Paye, sociólogo belga e prestigioso analista da evoluiçom das liberdades democráticas e das políticas estatais aplicadas a este respeito na Uniom Europeia e nos USA. Nesta ocasiom, Paye centra o seu interesse no chamado “mandato de prisom europeu” que, segundo ele, “dá força de lei ao que há de pior na Europa”, em referência a que facilita a colaboraçom interestatal e o reconhecimento das decisons judiciais de cada Estado polos restantes na perseguiçom da dissidência política. Valorizando a legislaçom “antiterrorista” de vários Estados da UE, o sociólogo belga conclue a respeito da situaçom no Estado espanhol que “a tortura é sistemática em Espanha” ao amparo da legislaçom especial actualmente vigente que permite incomunicar até 120 h. umha pessoa detida por motivos políticos. Paye fai aliás um repasso sobre o “reconhecimento mútuo” das decisons judiciais entre Estados de duvidoso carácter democrático que presupom o citado mandato de prisom europeu, a presença dos USA trás a elaboraçom das listagens de “organizaçons terroristas” e a extensom que na actualidade alcança esta denominaçom. Animamos encarecidamente à leitura desta entrevista que achega elementos de muito interesse para compreendermos a dimensom de determinados processos que se estám a produzir na UE para os movimento sociais e políticos dissidentes. – Se há mais resistência social, haverá mais luta. E mais repressão? Mantem-se a impressão de que a União Europeia seria muito mais democrática do que os EUA também no plano das regras internas. Que ela não adopta leis tão graves como Bush com o seu “Patriot Act”. Mas, na verdade, se se estiver bem informado, verifica-se que a União Europeia está em vias, às escondidas, de fazer passar uma série de leis antidemocráticas extremamente perigosas. Portanto, vale a pena ouvir Jean-Claude Paye, um dos melhores especialistas sobre os nossos direitos democráticos. Para sabermos o que é que está a ser preparado concretamente no plano da repressão. J.-C. P.- Se se quiser saber o que é a União Europeia, há muito mais do que a Constituição, é preciso observar o lado da cooperação policial e judiciária e sobretudo como essa cooperação está inscrita no direito penal e no procedimento penal. E como se organiza essa cooperação europeia com os estados exteriores, principalmente os Estados Unidos. E aí apercebemo-nos de duas coisas: 1ª A União Europeia não é um Estado supranacional em vias de construção mas antes uma coligação de Estados nacionais cujos diferentes poderes se reforçam através da construção europeia. 2ª Em segundo lugar, a União Europeia não é uma alternativa ao poder dos Estados Unidos. Antes pelo contrário, apercebemo-nos de que ela é uma pequena substrutura inscrita num conjunto maior que é dominado pelo poder executivo americano. Vou dar alguns exemplos… Uma semana depois dos atentados do 11 de Setembro, dois projectos de decisões-quadro foram entregues subitamente pela Comissão ao Conselho. Há o projecto relativo ao terrorismo e o projecto relativo ao mandato de prisão europeu. Estes dois projectos são apresentados como resultantes dos atentados do 11 de Setembro. Mas pode-se perguntar, se se tiver um pouco de bom senso, como se podem estabelecer dois projectos de lei num espaço de uma semana. Estima-se que é preciso seis meses a um ano para redigir a lei e mais ainda para concebê-la. Portanto, pode-se dizer sem erro que, tanto do lado europeu como do lado americano, havia projectos de lei nas gavetas e que esperavam uma boa altura para serem aprovados. Se se olhar do lado europeu, vê-se “decisão-quadro relativa ao terrorismo”. Se existiam apenas seis países –a França, Alemanha, Inglaterra, Itália, Espanha e Portugal– que beneficiavam já de uma lei anti-terrorista. Países como a Bélgica tinham a possibilidade de perseguir os actos terroristas com outras legislações. Por exemplo, os delitos clássicos tais como a morte, o desvio de um avião ou colocar uma bomba, foi sempre punido em qualquer direito penal, não é preciso uma legislação especial para isso. Mais, na Bélgica, não havia ideias como as de associação de malfeitores ou de redes criminosas, que permitiam já investigar e perseguir as próprias organizações e criar um delito de pertença. Portanto, era possível ser perseguido pelo simples facto de pertencer a uma organização sem ter cometido um determinado delito. Há no código penal dos países que não tinham legislação anti-terrorista tudo o que é preciso e mais ainda para perseguir delitos terroristas. Portanto, se se impõe aos nove países que não têm uma lei anti-terrorista integrar uma tal legislação nos seus códigos penais, isto é devido a um conjunto de razões que não são confessadas. Então, estas razões podem ser vistas nos países que já tinham uma tal legislação. Percebe-se que em países como a Alemanha, Espanha, Itália as leis anti-terroristas permitem uma generalização dos procedimentos de excepção a todos os estádios do procedimento penal: desde a investigação policial até à prisão das pessoas. Por exemplo, em Espanha, se se é suspeito de terrorismo, não se tem a escolha do advogado, tem-se um advogado que é designado pelas pessoas que o prendem. De seguida há uma espera de 72 horas durante a qual o acusado não pode ver ninguém, nem fazer um telefonema para a família, nem mesmo telefonar a um advogado senão para aquele lhe é designado. Pode falar com esse advogado no fim dessas 72 horas a partir do momento em que assine a sua declaração –normalmente de confissões – depois de ter sido submetido ao que se chama de “pressões físicas moderadas” no léxico americano, o mesmo é dizer que a tortura é sistemática em Espanha. Em Itália, há a possibilidade de estar preso até dez anos e oito meses. Na Alemanha, pode-se ler o correio entre o advogado e a pessoa que está detida. Pode-se fazer dessa forma o percurso por todas as legislações anti-terroristas a nível nacional. Cada uma delas permite desenvolver procedimentos de excepção. Portanto, pode dizer-se que se se quer impor um tal tipo de legislação a nível europeu não é para lutar contra o terrorismo, porque há já tudo o que é preciso, é simplesmente para poder generalizar os procedimentos de excepção em todos os países que terão este tipo de legislação. Aí, intervém a segunda “proposição-quadro” apresentada após os atentados do 11 de Setembro: “o mandato de prisão europeu” que a Bélgica integrou no seu código penal tal como o conjunto dos outros países europeus. O mandato de prisão europeu é um procedimento que substitui os acordos de extradição. Porque os acordos aborrecem muito a justiça e a polícia, é moroso e há muitos controlos que se têm de efectuar tais como o pedido de legalidade: será que o pedido é legal? Será que há um delito inscrito na legislação do país que recebe o pedido? Isso não é de somenos importância. Porque, num país como a Itália, há sempre incriminações que saíram do código fascista. Há, por exemplo, a noção de organização subversiva, uma organização subversiva é uma organização que por exemplo defende a luta de classes, que preconiza o derrubamento pela violência de uma classe por uma outra. E geralmente, desde o fim dos anos 70, todas as pessoas dos movimentos sociais são perseguidas com base nesta incriminação. Não só é uma incriminação que data de 1923, que foi redigida pelo ministro da Justiça de Mussolini, e que não foi suprimida antes foi reforçada. Em 1979, a lei Cossiga confirma a noção de incriminação subversiva e aumenta as penas em caso de terrorismo. O exemplo italiano é muito interessante porque, do ponto de vista do direito, fez-se inteiramente a junção entre o direito fascista e o direito da modernidade onde as excepções são baseadas na noção de organização terrorista. Assim, todos os pedidos de extradição que ocorriam nesta base de incriminação, por exemplo para pessoas refugiadas na Bélgica ou na França, eram recusadas pelo poder político porque isso não era uma incriminação reconhecida em França ou na Bélgica. Com o mandato de prisão europeu, isso já não tem importância, não é preciso que seja um delito no país que receba o pedido, é suficiente que um país reclame a pessoa e a pessoa é quase automaticamente enviada. As únicas coisas, nas quais se pode intervir, são as questões de procedimento, se os carimbos bem colocados, em ordem e se por exemplo não há prescrição. Você recorda-se de que há dois bascos na Bélgica para quem a Espanha pede a extradição no quadro do mandato de prisão. Eles estavam na Bélgica há mais de dez anos e a Espanha já tinha pedido duas vezes a sua extradição com base em antigos procedimentos. Isso foi sempre recusado com base na ilegalidade: essas pessoas eram acusadas de ter albergado personalidades da ETA que meses depois de estarem com eles cometeram um atentado. O problema para o poder é que eles tinham sido denunciados por uma pessoa que tinha sido torturada e um julgamento em Espanha reconheceria que, devido à tortura, estes testemunhos eram nulos. É uma situação de “força julgada”, em que há um acto judicial que diz que o pedido é ilegal mesmo do lado espanhol. Mas neste quadro do mandato de prisão, não é relevante, o pedido é satisfeito. Portanto, estes dois bascos permaneceram na Bélgica porque houve prescrição. Mas se eles estivessem na Bélgica há quatro ou cinco anos, essas pessoas teriam sido entregues automaticamente. – Com este novo procedimento do mandato de prisão europeu, não há mais decisão a tomar por um poder político que pode eventualmente ser submetido a pressões ou a uma mobilização como nesse caso ou aquele de um refugiado turco, há alguns anos. Isso quer dizer que a polícia e a justiça poderão automatizar as extradições? J.-C. P.- É exactamente isso. É um procedimento automático baseado num princípio que se chama reconhecimento mútuo. Quer dizer que toda decisão de uma autoridade judicial de um país europeu é reconhecida automaticamente como democrática pelos outros. Isso quer dizer que a incriminação fascista italiana se torna automaticamente democrática. Quer dizer que a Espanha que pede pessoas para as torturar, impedindo-as de ter um advogado, é tudo um procedimento democrático. Portanto, vê-se que, no quadro do “mandato de prisão” através de uma legislação anti-terrorista, cada país desenvolve procedimentos de excepção diferentes que têm cabimento não só no país onde as leis são votadas mas também no resto da Europa. – Portanto, de facto, toma-se o que há de pior na Europa e dá-se-lhe o direito de ser a lei em toda a Europa… J.-C. P.- Muito bem resumido! Portanto, teremos o pior de cada legislação nacional mas também o pior da unificação europeia. Há qualquer coisa de interessante na “decisão-quadro europeia” em relação às leis já existentes mesmo em relação ao seu modelo inglês. Porque ainda não lhe tinha dito, mas explicam-nos as leis anti-terroristas aprovadas depois do 11 de Setembro, com prazos de três dias, uma semana… Não é crível, mas se se toma a lei inglesa que serviu de modelo à redacção da “decisão quadro europeia”, ela entrou em vigor em Fevereiro de 2000. Ou seja, sete meses antes dos atentados, houve portanto capacidade de antecipação dos acontecimentos, pode tirar as conclusões. O que é interessante nesta decisão, mesmo de acordo com as leis mais modernas como a lei inglesa, é que ela introduz este elemento. Em cada lei anti-terrorista, você tem um elemento objectivo, por exemplo desviar um avião, um homicídio. E um elemento subjectivo, quando se comete uma acção com o fim de fazer pressão sobre um governo ou uma organização internacional. É pois interessante porque, por exemplo, o fito de todo o movimento social em que você se manifesta é fazer pressão sobre o governo para que ele não privatize os serviços públicos. Você faz pressão sobre o governo, portanto já entra nesse tal quadro. Além disso, na “decisão quadro europeia” o elemento objectivo não tem necessariamente de ser um homicídio, pode ser igualmente a tomada de assalto de um edifício público ou um meio de transporte público. Portanto a tomada de um meio de transporte público para evitar a sua captura privada, ou seja a sua privatização, se você toma de assalto um ramal do metro com a intenção de fazer pressão contra o governo para que ele não seja privatizado, a sua acção entra no âmbito da “decisão-quadro europeia”. Portanto, vê-se bem quem é visado no interior, sobretudo quando se sabe que há a noção de organização internacional. Quando se sabe aquilo que vai ser discutido ao nível da Organização Mundial do Comércio vê-se também que os altermundialistas anti-OMC são directamente visados por esta “decisão quadro europeia” que está integrada no nosso direito penal. Quero dizer que isso é a parte mais soft (risos), realmente a mais soft. Porque se se quiser ver para onde se vai tinha que lhe falar da Inglaterra e da sua já provada grande capacidade de antecipação. Desta vez, a 11 de Março de 2005, isto é inteiramente novo, a Inglaterra votou uma nova lei anti-terrorista que corrige a antiga, a qual –como o “Patriot Act”– autorizava o encarceramento com duração indeterminada, sem culpa formada, sem delito algum, de todas as pessoas estrangeiras suspeitas de terrorismo. E uma sentença do Supremo Tribunal afirmou, isto no entanto é injusto, discriminam-se os nacionais em relação aos estrangeiros, não se pode aceitar esta discriminação! Portanto, os procedimentos de excepção foram passados dos estrangeiros para o conjunto da população. Mas não se podia encarcerar, portanto foram adoptadas medidas mais suaves num primeiro tempo. Ou seja, se você fosse suspeita de fazer parte ou de estar em contacto com pessoas que fossem também suspeitas de terrorismo, você era suspeita a dois tempos, era já uma suspeita ao quadrado. Mas pode-se tomar em relação a si um conjunto de medidas de controlo como a pulseira electrónica por exemplo, obrigá-la a apresentar-se todos os dias no comissariado de polícia, buscas à noite na vossa ausência, impedi-la de ter um emprego e isso estende-se até às prisões domiciliárias. No caso de prisões domiciliárias é preciso autorização de um tribunal. Pode-se indagar sobre o que a apreciação poderá ser fundamentada uma vez que não há julgamento e o facto de decidir vos colocar sob esta medida de controlo depende de uma avaliação dos serviços secretos, cujo dossier é secreto. Ou seja, o juiz convoca o tipo das informações e lhe pergunta: — “Senhor, tem provas?” — “Sim, senhor Juiz” E então o juiz toma a decisão. Você vê no que dá, o que se viu em Inglaterra está em vias de nos ser passado para a Europa. E todos estes tipos de medidas vão aparecer como projectos nos diferentes países. E portanto digo isso agora para que estejam prontos a responder. – Poderias falar-nos da lista de organizações terroristas na Europa e nos Estados Unidos? J.-C. P.- Este tipo de procedimento em que se tomam medidas sem controlo judiciário, sem provas, já existe ao nível europeu. Uma vez que há listas de organizações terroristas, aquela do Conselho permite-lhe por exemplo bloquear as suas contas bancárias, suprimir o conjunto de ajudas do Estado até porque você está inscrito na lista. E é uma decisão administrativa que se faz pelos funcionários do Conselho geralmente a pedido dos Estados Unidos. Por exemplo, na Holanda, o antigo presidente do Partido Comunista Filipino, José-Maria Sison, que esteve refugiado na Holanda… Do dia para a noite, viu a sua conta bloqueada, tinha um alojamento do CPAS holandês, foi posto fora do seu alojamento e assim percebeu do dia para a noite que o seu nome fora posto na lista anti-terrorista. – Com efeito, foram os Estados Unidos que fizeram o pedido nesse caso… J.-C. P.- Efectivamente. E a Holanda, depois a União Europeia colocou-o na lista de organizações terroristas. E no entanto você pode ser posto numa lista sem se saber, pois a lista da Europol é secreta. Isto permite legalizar certos procedimentos de inquérito muito intrusivos. Como, por exemplo, ler o seu correio electrónico, abrir o seu correio, revistar à noite mesmo na sua ausência e, se se achar qualquer coisa, poderá ser usado contra você. Não pelos serviços secretos porque é ilegal, mas neste caso como tinha o seu nome na lista da Europol, geralmente a pedido dos Estados Unidos, se se encontrar alguma coisa mesmo sem nenhuma relação com o que se procura, isso poderá ser usado contra si. – Não tenho dúvida de que tens ainda muitas más novidades dessas para nos contar! Retenho portanto isso que com o mandato de prisão internacional, que permite de facto aos piores regimes fazer tudo o que quiserem no território europeu, com a definição de actos terroristas e a lista de organizações terroristas, completamente arbitrária, politizada e submissa aos Estados Unidos, se está em vias de adoptar uma série de medidas antidemocráticas, extremamente perigosas e é do interesse público divulgar… * Sociólogo belga, autor de numerosos artigos em Le Monde diplomatique, Les Temps modernes, La Revue nouvelle, Avancées, Toudi, Le Journal des Procès, autor dos livros “Vers un Etat policier en Belgique”, “La lutte anti-terroriste – Fin de l’Etat de droit?”, “Lutte antiterroriste ou terrorisme d’Etat” e outros.